Crônica – O fio do Outono
Ela estava curiosa. Queria saber da festa de casamento. Dos novos amigos conquistados. Dos velhos amigos referendados.
Ela era a própria interrogação. Até brinquei que torcia para só deixar exclamações no lugar das interrogações. Respostas e nenhuma reticência para que ela se satisfizesse - mesmo estando tão longe.
Esta coisa de além-mar sempre é problemático. Isso aprendi faz tempo.
O que impede a rotina é distante. O que impede o impulso é distante. O que tem de ser planejado demonstra a distância.
E assim ela está. Distante. Não sei se já sentiu isso. Se já aceitou. Ela é sempre muito reservada em seus temores e até em suas ansiedades. Aguarda os acontecimentos. Aliás, assim definiria o estilo aparente dela - só o aparente. O de dentro ninguém sabe. Muitas vezes nem o próprio dono. Pode-se ser senhor de si, mas é muito mais complicado ser dono de si.
Minha avó sempre me disse - aparência é igual à dúvida, menina, aparência é igual à dúvida.
Muitas vezes penso que só eu sou ansiosa no mundo, porque todos sempre me parecem tão resignados. Diria até amadurecidos. Só eu sofro de mania de surpresa. Mas lembrei – agora – do poeta português. Falou que só ele apanhou na vida. Os amigos todos só se deram bem. Pode ser engraçado – e por isso mesmo verdadeiro. Assim são as aparências e muitos dos auto relatos. Vai ver por isso não há julgamento definitivo. Deve ser isso que significa a palavra instância.
Mas hoje falamos. Usamos das modernidades. Para isso estamos neste século: para usufruir o que ele apresenta de melhor. As modernidades nas comunicações. E celebramos a evolução. Cedo para uma; já tarde para outra. O relógio não obedece a novidades. Mantém seus fusos intactos.
Podem inventar o que quiserem, mas o Tempo real é domínio do relógio.
Estava tão séria. Senti pela impressão digital. Também tenho meus critérios evolutivos. Não são só corporativistas que o detêm. Perguntei. Pela seriedade. Conto com direito a dois pontos e hífen.
Saíra ontem para um jantar. Arrumara-se. Escolhera com detalhes tudo que iria acrescentar à própria imagem. Tudo em estilo outonal. Olhou-se no espelho. Gostou do que viu. Segurou a própria bolsa. E desceu as escadas.
Sempre faz isso. Despreza o elevador. Acha que ele só serve para elevar flacidez dos músculos e recusa-se a compactuar com ele - o elevador. E lá se foi. Tudo ia muito bem. Até que chegou à escada que dá acesso a uma calçada. Como de hábito também desprezou o corrimão. Artefatos desnecessários. Seguia o conselho de uma parente sofisticada. Uma mulher desce as escadas sem olhar os degraus. Como aquela atriz magrinha dos filmes antigos. Observe se algum dia ela desceu uma escadaria olhando para os pés. Nunca. Só olhando em frente. Vai lá saber os truques negativos da memória. Foi relembrar disso justo naquele momento. Obedeceu.
Repetiu. Desceu olhando em frente. Segura apenas em sua bolsa.
Outono. As árvores se desfolhando. O céu cinza escurecendo para a noite. Muitas folhas pelo chão. Pelos degraus. Linda cena. Como uma tela de francês impressionista. Se não fosse - de novo - a intervenção da realidade.
Cruel realidade sazonal. Olhando para as árvores. Pisou nas folhas. Escorregou. Nas folhas. Que aceleraram a descida. Desceu os degraus numa posição nada convencional. Nada em combinação com a proposta. E se viu na calçada. Rasgara a saia. Machucara o braço de leve. A musculatura reforçada pelo não uso do elevador sofrera menos com o impacto. É certo que caiu. Mas acrescentou - caí lentamente. Muito lentamente. Nada de alvoroço em quedas. Isso nunca.
E fiquei pasma com a continuação do relato. As meias. As meias não rasgaram. Nada daquele comentário desolado de fio puxado. Em meio a tudo isso. Diante do outono. Diante dos galhos desfolhados. Poupara a meia fina de seda.
Lembrou da parente sofisticada. Também pela impressão digital pude sentir. O olhar fino e irado pelo pensamento da orientação da parente. Mas se recuperou. Levantou-se também lentamente. Não por imposição de elegância. Desta vez a dor fez esta aparência prevalecer. Não gemeu. Não chorou. Conferiu as meias. Continuava segura na bolsa. Ajeitou os cabelos e continuou.
Foi ao jantar assim mesmo. Com o pequeno rasgo na saia. Mas com as meias perfeitas. Alguns apontaram. E perguntaram. Outros nem notaram. E se anteciparam. Só ela ria com um certo disfarce e muito esforço - para destravar o olhar fininho da lembrança da parente sofisticada.
Na manhã do dia seguinte a musculatura dolorida a despertou para o dia. E para as interrogações. Olhou a saia no cabide com o pedacinho também sofrido. Olhou para as meias. Íntegras. Sorriu. Conferiu os dedinhos das mãos. Mobilidade conservada. A conversa poderia se estabelecer. Com fuso ou sem fuso. Com rasgo ou sem rasgo. De folhas a flores. De outono a primavera.
Eis uma Lady!
Por Lêda Rezende
categoria: Crônicas Rmm, Leda Rezende
0 | Divulgue e Comente!